As águas do Mar - Por Marlon Pereira

Nada jamais se igualará aos dias em que o céu com todo o seu peso divino desaguou ao mar, refletindo sobre a terra as águas em que se banhavam os anjos. Frente à vida, no mar, fez-se uma vez um garoto que sonhava em tocar o céu com a ponta da língua. Só apenas uma. Afinal, como poderia ser duas, três, ou mais vezes, se lhe faltou sempre força ao remo, se tudo o que fez nesta única chance que lhe foi dada, foi colecionar saudades? Na prateleira firmada a uma das paredes de sua alma, estavam todas as suas saudades em ordem de intensidade. Saudade de tudo que teve, e que se perdeu ao vento, para o tempo. De tudo que em vida desejou, mas que por um motivo tão desconhecido quanto à própria vida, nunca chegou a tocar. Vivia aprisionado às lembranças que a sua mente de marinheiro menino vez ou outra tratava de sabotar. Antes, verdades abstratas, em seguida, saudades concretas. Deu-se sempre assim o menino, sonhando com grandezas. Desejando navegar por entre as águas do mar que desaguava do céu. O céu não era seu, este nunca foi. Somente o sonho de navegar por entre as nuvens tinha o menino, e foram nessas mesmas águas que por muitas vezes o marinheiro se afogou. O garoto desde que nasceu, em uma pele úmida e quase nada humana, demasiadamente exposto, havia cravado ao peito, três palavras: Sol. Mar. Lua. Todos os seus dias resumiam-se a estas, tanto que, quando as duas que representam os astros que repousam ao céu lhe foram arrancadas, arrastaram-lhe também a vida, ficando apenas um mar de novas saudades, surgindo entre o Sol e a Lua, um Mar de lembranças e faltas. Lembranças do que não mais via. Faltas que o fazia ausente de si mesmo. História que se cumpria sem sentido, até porque se caso o tivesse, não teria sentido em ser contada. Em um passeio pela praia diante do cristalino de seus olhos barrentos, ocorre o inesperado: os fios do tear soltam-se um por um de suas mãos. O tempo parou pela primeira vez, e a essência de sua alma desgarrou-se do corpo - corpo que sempre, sempre, sempre foi mais de outros do que seu. Quando o Sol se escondeu nas horas do dia, e sem a claridão da Lua, que sempre o iluminou, em seu peito formou-se maremoto, os dias tornaram-se uma noite só e sem fim. Se antes para o garoto nada fazia sentido, agora muito menos o tinha. Aliás, nada mais ele tinha, além do Mar. Dito o feito, desta vez, quem parou foi o garoto, sentando-se solitário a fina areia, rente à linha do tempo, e pôs-se a beber do Mar. Alcoólatra ficou de tanta sofreguidão, e já não suportando mais beber, voltou então os olhos para o horizonte, e no mar que se partia, viu saída. Notou que é dele que desperta o sol, e que é em suas ondas que a lua repousa o sono. E pela primeira vez e única - pois nenhuma outra lhe seria dada - pensou o marinheiro em ser Mar. Aquilo lhe fizera brotar ao peito uma nódoa quente de esperança. Não quis esperar o convite da Iemanjá, nem o dia, nem a bênção. Como um bom pescador que sempre achou que era, sentiu-se também dono daquelas águas, e na sétima hora do dia que não era bem um dia, ergueu a vela, partindo como se a sua vida dependesse daquilo - e para ele, de certo modo realmente dependia. A bordo estavam todas as suas saudades engarrafadas, pois o garoto estava realmente decidido que iria desfazer-se delas, para então viver de novo, viver no novo, finalmente viver. A cada milésimo dos segundos, mais distante do porto estava, já não mais via o litoral. Os primeiros dias lhe serviram como um fascínio incontestável, estava ele certo de que nada poderia dar errado. Beijou então o mar sonhando com o céu que não tinha, e no repente do tempo que pela segunda vez parou, pôde sentir anjos nadarem em seu peito. Anjos que traziam em suas vertes vestígios da lua e os raios do sol sobre suas cabeças. Insensatas sensações que lhe fizeram arder em febre. Com o tempo que corria feito água, tanto sol, e sal, já não mais o fazia bem, então a dúvida o atingiu ao peito como flecha que percorre o corpo e se instala ao crânio matando assim aos poucos. Foi somente no quadragésimo dia que o marinheiro descobriu-se náufrago, que estava ele a navegar naquele deserto azul em constante delírio, dia após dia, varando também as noites. Seguindo o Sol. Seguindo a Lua. Em vão, pois nada tinha consigo, além do Mar. Remando na loucura por muito tempo, passou a ser são, e com o coração já marejado, vomitou para o céu verdades tonelosas as quais pesaram nas nuvens, fazendo-o então chover, devolvendo assim ao mar, angústias. Quando um silêncio quase surdo se fazia, vociferou então o mar como pai, através de ondas firmes e devastadoras - Sou eu o que te falta. Volte ao fundo, pois lá é o teu lugar! Para tal feito, seria preciso muita coragem. Determinado, caminhou então o menino até a proa do barco. Ele nada mais temia. De braços abertos e pulmões inflados, como em um ritual, lançou-se de costa ao mistério. Despedindo-se, os seus olhos estavam vidrados ao mar aéreo, enquanto caía e abria mão do que nunca tinha tocado, mas que tanto, tanto, tanto havia amado. Está feito. O menino já não é mais híbrido. Tocou ao mar como quem toca com os lábios os lábios da vida, e pouco haviam trocado as suas águas e dores e saudades, quando tudo na brevidade do acaso tornou-se no paradoxo daquele não mais existir, um nada. O mar nem esperou o tempo parar pela terceira e última vez, para enredar então como pesca o marinheiro, que por sua vez - uma segunda que lhe fora dada - não resistiu àquela fusão, já que nunca se sentiu tão completo quanto ali. Teria sido sempre o garoto uma parte do mar que haveria de ter se rochedotificado outrora? Barro que se fez jarro? Chuva que se fez gota? - já não importa! - Neste momento o tempo devolve ao vento, tudo que juntos levaram, formando assim um tornado de lembranças que serão cobertos pela areia da praia que agora se faz distante. O sempre se fez nunca. E o nunca para o garoto, sempre será um talvez. O sonho de ter o que não se tem, o levou até alí, e certamente se por algum acidente este alcançasse o inalcançável, o transformaria logo em seguida em nunca, mas… O agora não mais existe, nem o talvez, quem sabe, nem um depois. O garoto adentrou as águas do mundo, beijou com os pés a profundeza, guardou todo o seu corpo no mar, e nada mais em sua volta se fez sólido, nem mesmo ele. Quando o sol mais parecia corpo de sal, o garoto assumiu a forma aquosa de ser. Este já não mais sonhava em regressar ao cais. Entregou-se ao mar, como quem se entrega aos céus, e em pouco tempo, pouco a pouco, em definhos lento de pele, voltou a ser parte daquela imensidão azul de mistérios. Como chuva às avessas, escorreu-se pelos olhos - ralos d’alma - misturando assim as suas lágrimas nostálgicas com aquelas águas também salgadas e profundas. Ao final de tarde, uma luz de farol rasga o céu apontando caminho de volta, foi quando o marinheiro com braçadas frenéticas nadou em direção contrária, deslizando rumo ao nada, para o distante e além. Mergulhou, e não mais submergiu. O ar, a terra, e a vela já não mais o faria falta. Ele já não era mais pescador, sonhador ou pesca. O garoto agora é mar. Ele sempre foi Mar. Em meio a tanto tempo líquido, era quase impossível de se compreender o seu intenso modo de existir, mas uma vez como homem, em coisas impossíveis o garoto formou-se perito, e hoje mesmo sendo líquido, ainda assim é um tanto mais sólido que o tempo. A vez que lhe fora dada fizera-se mais do que suficiente, pois com esta, o garoto cumpriu finalmente o mistério das águas. Agora era ele e o mar um só corpo, uma única saudade. Marlon Pereira

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